Na companhia do mal perante uma sociedade adoecida:
resenha do disco “A Sombra Que Me Acompanhava Era a Mesma do Diabo”, da banda Sangue de Bode.
Quando fui exposto a esse álbum, senti um impacto profundo à primeira vista devido a fórmula presente em seu apelo visual: uma capa instigante, um título incrível e um nome de banda bem peculiar. Todo esse conjunto foi o suficiente para atrair este que vos fala a um caldeirão sonoro composto pelas variadas vertentes da música extrema acompanhado por um discurso reto e visceral que retrata a morbidez e a crueldade presente em nossa sociedade.
Formado no final de 2017 na região serrana do Rio de Janeiro, o Sangue de Bode é um power trio composto por João Pedro Oliveira (vocal e guitarra), Gabriel Fontes (baixo) e Gabriel Medeiros (bateria), que desde a sua concepção - com a música “Comendo Lixo” - mantém um estilo único de compor buscando agregar metal extremo com letras de forte crítica social. O disco enfatizado nessa resenha é o primeiro álbum da banda.
A obra começa com uma faixa instrumental intitulada “O Carcinoma Terrestre” caracterizada por ser um estímulo atmosférico que precede o esporro contido em “A Praga Humana”, entregando a tônica do trabalho. Aqui você verá elementos de black metal, death metal, thrash metal e hardcore punk em conjunto com letras completamente negativas que refletem todo o sentimento de repulsa e descrença presente em um cenário de completa miséria.
“Chafariz de Sangue” reflete o desespero de um filho vendo a vida do pai se esvair diante de suas mãos, em um clima totalmente claustrofóbico que tem sua tônica enfatizada com a presença da solidão e do abandono. O “Clímax Demoníaco” que dá título a faixa seguinte se mantém presente por toda a obra, desbocando num profundo niilismo presente em “Jazigo”. Não há espaço para sentimentos de esperança ou qualquer tipo de atitude positiva.
“Messias de Merda” surge como uma singela dedicatória ao verme que atualmente ocupa a Presidência da República, botando a cara a bater contra toda a podridão exercida pelo dito cujo e seus asseclas milicianos e neopentecostais. “Filho de um Manequim” e a direta “Minha Refeição é no Lixão” colocam um enorme peso na consciência do ouvinte sobre as consequências do regime capitalista vigente e o peso da revolta causada pelo mesmo quando nos deparamos com a pobreza em seu estado mais bruto.
O hardcore/black metal de nome “O Câncer Vem da Mão de Deus” e a caótica “Possuído Dentro da Vala” refletem a assombrosa condição que a mente humana pode alcançar em situações de desesperança, nos fazendo questionar: fomos abandonados por um deus criado por nós mesmos ou estamos sendo acompanhados pelo seu antagonista como uma forma de castigo ou penitência diante de nossa própria insignificância? Eis a dúvida que surge aliada ao título da obra.
As duas últimas músicas, de nome “Pivete Executado” (um instrumental composto em cima de recortes de áudio) e a faixa-título, encerram o disco como um rastro de pessimismo. No entanto, é necessário e recomendável utilizar esse sentimento negativo como uma forma de questionamento mediante o nosso papel dentro da sociedade e como podemos fazer para reverter todo quadro miserável de forma direta e coletiva. Trata-se de uma obra pesada em todos os sentidos, pois é um banho de realidade difícil de digerir. Mas no fim das contas, vale a pena conferir tratando-se de um trampo feito com muita qualidade e que não deixa nada a desejar.
Lançado em fevereiro de 2020 pela Electric Funeral Records, o disco não recebeu sua versão física devido a pandemia do COVID-19, até a confirmação de uma união de selos que, no início de agosto, anunciaram a realização do feito em conjunto com a banda. Além disso, o trio lançou outro single intitulado “A Missa da Guilhotina”, um hardcore reto como um soco no estômago e que traz uma crítica social contundente envolvendo nossa eterna luta de classes em contexto brasileiro e em meio a uma pandemia arrasadora.
O disco figura entre os melhores lançados no ano de 2020, mesmo num momento delicado para todos. Finalizo esse texto ressaltando a importância de valorizar nossos artistas dos mais variados setores, principalmente em um momento onde perder a cabeça não é uma opção. O underground precisa estar vivo e só depende de nós para continuar levando mensagens de revolta e contestação, tal qual faz o Sangue de Bode!